quarta-feira, 23 de março de 2011

Crítica Histórias de Chocar (Ensaios de Amor), de Rita Clemente


Crítica Histórias de Chocar (Ensaios de Amor), de Rita Clemente

Escrito em 22 e 23 de março de 2011.

Um excelente espetáculo o que Rita Clemente realizou com Histórias de Chocar, apresentado nos dias 19 e 20 de março últimos no Teatro do Oi Futuro Klauss Vianna. Um primeiro ponto notável é o fato da peça fazer parte de uma Mostra Rita Clemente, o que já indica que estamos diante de uma artista que faz a diferença na cena teatral da cidade. A mostra apresentou três peças da trajetória da atriz, o que daria uma ótima oportunidade para se pensar sobre as possibilidades de desenvolvimento que um artista de teatro tem no contexto de Belo Horizonte. Infelizmente, só pude assistir a esse Histórias de Chocar (houve um tempo em que o teatro acontecia “sem descanso semanal, em duas sessões, às 20 e 22 horas, afora as vesperais de domingo”, segundo Décio de Almeida Prado, em O Teatro Brasileiro Moderno. A vida contemporânea impede com que vejamos teatro em dias “úteis”da semana).

É preciso reconhecer que Rita Clemente ocupa em espaço bastante peculiar no teatro belorizontino. Grupos de teatro, que sem dúvida são uma tradição de Minas Gerais, teríamos alguns capazes de realizar uma mostra significativa de seus trabalhos. Mas não é qualquer artista isolado que é capaz de fazer isso. Rita pode! Estamos diante de um verdadeiro trabalho autoral, em que a artista assume o papel simultâneo de atriz, autora, diretora, cantora, performer e incentivadora principal do empreendimento. E é emocionante ver uma artista determinada a tomar as rédeas de sua profissão, de assumir a responsabilidade por todos âmbito de criação de sua arte, de ser, enfim uma Mulher, com eme maiúsculo, do/de Teatro.

Rita demonstra uma direção daquelas que se diz ser “precisa”, no linguajar da “crítica teatral”, criando nuances de interpretação – dela e de seu parceiro de cena, Olavo de Castro – e medindo bem as “curvas dramáticas” (Oh critiquez danado!), as subidas e descidas de intensidade que uma boa encenação sempre tem. Como atriz, é excelente! Olavo de Castro ainda tem um caminho a seguir. Sua interpretação é ótima, mas é claramente ainda inconstante em cena. Dito isso – que são os lugares comuns da crítica teatral contemporânea -, vamos a outros lugares!

Há uma questão a ser dita sobre a peça no que diz respeito ao seu tema e à sua forma. Questão, não problema. É que para mim, no fundo, ficou a sensação de que Histórias de Chocar é, uma comédia romântica, no exato sentido em que essa catalogação é utilizada nas locadoras de filmes. É engraçada (e muito!) e versa, de maneira calma e tranquila como toda boa comédia romântica, sobre as venturas e desventuras do amor. Trata o tema com uma delicadeza, cuidado e interesse que a deixam a anos luz de distância dos rasos besteirois que continuam insistindo em abordar esse mesmo assunto. Mas, para mim, é uma comédia romântica.

Como disse, isso não é um problema – não há, afinal, problema algum em se querer fazer uma comédia romântica! – mas me levanta uma questão.

Desde o período romântico, as relações interpessoais tornaram-se o assunto central da produção teatral ocidental. Diderot, Beaumarchais, Mercier entendiam que o microcosmos familiar é o núcleo em torno do qual deve girar o drama. Saem de cena os reis, rainhas, deuses e semi-deuses e entram personagens mais próximos do cotidiano e do perfil médio do público mais frequente do teatro. A operação que a comédia romântica fez foi retirar o peso dramático dos conflitos que ameaçavam quebrar essa célula familiar para colocar em seu lugar o amor e a imprevisibilidade das relações. E essa foi uma operação feita no seio da indústria cultural de filmes de Holywood. Pode-se dizer que essa receita atingiu amplamente seu objetivo de conquistar um enorme público cativo. É um filão de inegável sucesso particularmente no cinema norteamericano, do qual é filho declarado.

Esse sucesso é particularmente devido a uma característica do cinema em relação ao teatro: simplesmente o cinema é formalmente mais capaz de abordar esse assunto que o teatro. O filósofo e encenador francês Denis Guénoun diz que “se a identificação desapareceu no teatro, como modo dominante da experiência, ela impera na relação cinematográfica. Não nos identificamos mais com nenhum herói de teatro: mas nos identificamos, e como, com os heróis e personagens de cinema.” Daí que a comédia romântica arraste muitas pessoas ao cinema - mas mais ainda às locadoras, já que ela funciona mais no aconchego do sofá de casa do que nas cadeiras de cinema – e o teatro nem sempre atinja o mesmo sucesso, tratando do mesmo assunto e sob a mesma perspectiva. A lógica é mais ou menos assim: se o que eu quero assistir é a uma comédia romântica, eu vou optar por assistir cinema. Se eu opto por assistir teatro, eu preferia ver outra coisa.

Não que Histórias de Chocar pretenda se equiparar ao cinema em termos de identificação. Os atores não se cansam de chamar a atenção para o jogo de cena que eles implementam, às vezes falando diretamente ao público, demonstrando que aquilo não passa de teatro, de convenção entre atores e público. Nisso, o teatro é mais capaz que o cinema. E isso Rita Clemente fez magistralmente. Mas isso não chegou a fazer com que a peça se tornasse um comentário do teatro sobre a linguagem cinematográfica, o que teria alçado Histórias de Chocar a um espetáculo beirando ao brilhante.

Que nada disso manche o que eu disse antes sobre Rita Clemente. É uma artista claramente diferencial na cena de Belo Horizonte. A questão é outra. Num dos folhetos distribuídos na entrada do espetáculo pode-se ler que a montagem “preza por uma linguagem acessível que considera e privilegia a sensibilidade e percepção do espectador”. Fica a impressão de que os esforços dessa excelente artista seriam potencializados se fossem direcionados a um outro tipo de teatro, mais experimental, menos dramatúrgico, mais ousado, que mais desafiasse a percepção do público do que simplesmente a considerasse e privilegiasse. Não há problema em se fazer comédia romântica no teatro, não há problema quanto ao tema. Mas o teatro pode apresentar esse gênero de uma forma própria, que o constitua como o “outro” do cinema, o que significa necessariamente desautomatizar a percepção e a expectativa do espectador contemporâneo.

ADENDO:

A citação de Denis Guénoun foi retirada do livro O Teatro É Necessário? Este e o Teatro Brasileiro Moderno, de Décio, são da Editora Perspectiva, da Coleção Debates.