quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Marcha para Zenturo


Crítica: Marcha para Zenturo, do Grupo Espanca! + Grupo XIX de Teatro

No recém lançado A Encenação Contemporânea, Patrice Pavis comenta que uma das doenças da encenação atual é a sua tendência a virar simplesmente “estilo”. Pavis entende por estilo a constante repetição de padrões de encenação que deram certo anteriormente, que foram inovadores quando usados pela primeira vez, mas que se tornam como uma “marca de fábrica, uma etiqueta, que reapareceriam sejam quais forem os autores ou espetáculos” (PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. Editora Perspectiva, 2010. Pág. 363). Este diagnóstico pode ser dado à peça Marcha para Zenturo, mas apenas parcialmente.

Isso porque Marcha para Zenturo não é simplesmente uma peça de teatro; é antes de tudo um acontecimento, um evento. Dois dos maiores e mais prestigiados grupos da cena contemporânea se unirem para realizar um espetáculo, nas condições de produção teatral que atualmente imperam no Brasil, é realmente um fato notável. É um ato que merece o justo título de vanguarda: algo que nem todos os grupos teatrais brasileiros poderiam realizar, mas que nomeadamente o Grupo Espanca! e o Grupo XIX de Teatro podem, porque eles atingiram a maturidade necessária para apontar caminhos e promover encontros. Elaboraram um ousado projeto de trabalho em conjunto, superando entraves de produção que, nesse caso, devem ter sido agravados pelo fato de serem grupos sediados em Estados diferentes, Minas Gerais e São Paulo.

O primeiro resultado deste encontro, no entanto, ficou abaixo do que era de se esperar de grupos de tamanha importância. Não que o espetáculo seja ruim, muito pelo contrário. É talvez a obra teatral mais bem feita de 2010 e certamente ainda a melhor de 2011. O problema é o que este bom acabamento da cena tende a esconder: a repetição de padrões de encenação.

Marcha para Zenturo ficou parecendo uma junção de estilos, como se os dois grupos já tivessem sido devidamente escrutinados pela “crítica teatral brasileira” e já se soubesse exatamente cada pequeno detalhe, elemento, técnica de composição de cada um dos grupos e agora só restasse a opção de aplicar bem as fórmulas testadas e aprovadas. Como se já se soubesse exatamente o que esperar de um espetáculo do Espanca! e do XIX e o melhor a fazer é dar ao público o que o público quer. Há no espetáculo um pouco de tudo de melhor que os dois grupos reúnem: um pouco de ótima dramaturgia, ao estilo Grace Passô (ela realmente é uma das melhores dramaturgas brasileiras e já não precisa provar nada pra ninguém); um pouco da estupenda encenação de Luis Fernando Marques; mais uma parte de atuações potentes de uma geração de atores que certamente vai marcar nosso tempo; há a descida de um dos atores do palco para o contato próximo com o público (diga-se de passagem, no momento mais fraco do texto, em que se faz uma desnecessária explicação do tema da peça), como que para confirmar que se trata de um espetáculo também do Grupo XIX; há o momento de encarar diretamente os espectadores, com a luz ligada, prenunciado repetidamente ao longo da primeira parte da peça; há sobretudo um brilhante achado cênico-dramatúrgico, como não poderia faltar numa peça do Espanca!, no jogo com a questão do tempo, tema explícito do espetáculo. É Grupo Espanca! e Grupo XIX de Teatro no melhor momento de criação. Mas ainda continua sendo apenas uma junção de estilos. Não há desafio; não há questionamento do que já foi feito.

Acredito que o que faltou foi questionar a linguagem teatral sem fazer concessões a formas consagradas. Faltou permitir que as formas de composição de cena de um grupo pudessem questionar as formas de composição de cena do outro, que um grupo desestabilizasse o outro, que se colocassem em tensão mútua, que o confronto de formas distintas, ainda que próximas, de fazer teatro desautomatizasse o modo de operação de cada grupo. Sabe-se que os dois grupos caminham na senda dos “processos colaborativos”, que tanto marcaram o teatro brasileiro nas últimas duas décadas. O processo colaborativo, longe de ser apenas uma moda, foi responsável por um novo impulso na dramaturgia e pela criação de algumas das melhores peças de todos os tempos no Brasil, reintroduzindo criatividade no meio teatral e constituindo-se numa contribuição do nosso país ao teatro mundial. Mas depois de vinte anos de experimentação, o processo colaborativo começa a dar sinais de cansaço e algum novo caminho precisa ser delineado no horizonte. Espanca! e Grupo XIX são os mais credenciados a desenhar esse caminho, ainda mais se se dispõem a trabalhar conjuntamente, desde que essa junção não seja somente devido a uma admiração mútua (em todo caso, necessária), mas por terem claro a necessidade de superação de uma época no teatro brasileiro. Não se trata de um voltar a trás, para um tempo pré-processo colaborativo, mas de perceber o que pode surgir do questionamento dele por grupos que dele nasceram. O processo colaborativo não pode deixar-se cair numa fórmula, tão bem amarrada e estruturada que é possível que dois grupos, distantes no espaço, possam se juntar e funcionar harmonicamente como um só.

Na minha opinião, talvez o caminho seja voltar-se mais ao fazer cênico puro que à dramaturgia, característica do processo colaborativo brasileiro. Uma colaboração que crie a partir do espetáculo exige outras competências dos atores que não a criação dramatúrgica da cena. Curioso que, para mim, o que é mais forte em Marcha para Zenturo não é a dramaturgia, o jogo cênico com a questão do tempo, mas o gelo sobre o palco, o seu derretimento frente ao público. Solução das mais simples e ainda assim das mais fortes. A “espetacularia” vence a dramaturgia, a performance vence o verbo.

Mas que nada do que eu disse esconda a importância histórica do evento Marcha para Zenturo. Quando contarem a história do teatro brasileiro do século XXI, os historiadores terão que começar pelo capítulo Grupo Espanca! e Grupo XIX de Teatro (com todo o respeito a um Teatro da Vertigem ou a uma Companhia dos Atores que, afinal, continuam aí realizando ótimos espetáculos). Espanca! e XIX são indubitavelmente o que houve de novo na década 00, e será parte desse capítulo o fato deles terem tido a vontade e a entrega para esse trabalho em comum.

Ernesto Valença, em 24 de fevereiro de 2011.

Um comentário:

  1. Ernesto, muito bom seu texto. Com clareza e simplicidade e delicadeza vc fez uma análise muito pertinente do espetáculo. Mas o melhor de um blog, é que a gente pode postar comentários (ao contrário das críticas em jornais). O que mais me impressionou em "Marcha.." foi justamente a questão do tempo. Ela passeia pela dramaturgia com desenvoltura desembocando na cena de forma tão bem estruturada que o que poderia ser um mero "recurso" de cena, e cair na forma simplesmente, se torna uma ferramenta eficaz de evidenciar o tema abordado. Mais: chega ser virtuose o como os atores sustentam a proposta do delay nas respostas. E aí sou obrigada a discordar sobre os grupos não se arriscarem. Outra coisa: acho que é bom quando reconhecemos um traço familiar de um grupo em suas novas montagens. Não estou falando de artistas que fazem a mesma coisa, e sim de artistas que mais que estilo, tem identidade.

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